25/04/2008

carta ao meu pai (morto)

Lima Duarte, 25 de Abril de 2008.

Olá pai,

Estou em casa. Mas não pense que eu voltei, eu vim só para essa data tão especial: que além de ser o aniversário da minha mãe é o dia do aniversário da sua morte. Hoje em dia as pessoas são menos saudosistas aqui em casa, embora o Marcelo, depois de algumas cervejas a mais, externe a falta que você faz. Seu primogênito voltou a freqüentar nossa casa e já tem um filho lindo, que corre muito. Os netos que você conheceu, Léo e Luísa, estão com saúde e muito inteligentes. Não poderia ser o contrário.

Minha mãe arrumou um namorado que não dá muito valor nela. Porque ela é minha mãe e todo o valor do mundo ainda seria pouco. Ela emagreceu uns 30 quilos e está linda. Mas não dá sorte com homem, como você bem sabe. Acho que os homens têm de tomar um cuidado maior com senhoras viúvas ou separas que tenham filhos, porque além de mulheres elas são mães. Nós filhos não deixamos barato nada que lhe façam, ou que deixem de fazer. Vai saber. Já não perdoávamos quando era você, nosso pai, que deixava faltar algo a ela, ou a agredia verbalmente. Porque bater você nunca bateu, mas algumas palavras cortam mais que navalha na carne. Mas ela ainda lembra de você quando faz sopa ou churrasco, diz que você gostava muito. Acho até que ela sente falta de cortar seus poucos cabelos.

Tudo andou muito mudado, pai. Ninguém tirou suas coisas do lugar. Mas também ninguém toca em mais nada seu. Seus quadros agora são obras de arte para família, mas quando você os pintava todos diziam quem eram feios. (Não pra você, obviamente) Alguns dos nossos até levaram seus quadros, mas não sei se eles enfeitam a sala ou o quarto deles. Aquele da fazenda está na sala do Marcelo. Outros ficaram lá em casa, porque eu não deixei que se desfizessem deles. Minha mãe trocou a cama e os lençóis de vocês. E depois de algum tempo teve coragem pra tirar a aliança, mas comprou um anel caro pra colocar no lugar. Acho que era costume de ter algo naquele dedo.

Ainda lembro quando você me mandava te chamar de SENHOR, ordem que eu obedecia entre os dentes. Você me fez muito mal e quando resolveu me perguntar que livro eu lia - era o Macário, de Álvares de Azevedo – já era tarde demais: você estava em cima de uma cama, e eu dava de comer na sua boca. Eu nunca te disse o quanto te amava. Talvez por medo, orgulho ou porque você tirava as mãos sempre que eu as tentava tocar. Mas pai, me orgulho das noites de boemia que tivemos em casa; de cada vez que você sorriu quando eu falava alguma asneira, como quando eu disse que a novela só acabava no último capítulo; e de como você prezava nossa educação, fosse na mesa (em que sobrar alimentos era um crime) ou então ao lidar com outras pessoas. Sempre nos mandou pedir licença e dizer obrigado, embora você mesmo não tenha exercitado essas normas com o povo de casa.

Eu estou na faculdade, mesmo sabendo que aquilo acaba comigo e que não nasci pra isso. Porque pra escrever, ler e fazer filme eu não preciso me sentar em frente aos professores de Segunda a Sexta, às sete da manhã. Eu sou mais eu. Mas vou ter um diploma, que talvez seja enterrado na sua sepultura. Quem sabe. Tenho um namorado, contrariando todas as expectativas. E pior, ou melhor, você gostaria muito dele tanto quanto eu gosto. Eu tenho muitos planos com ele, mas esses não vão com a carta, porque esses eu conto em segredo pra você toda noite.

P.S.: Dê um beijo na vó Julia e Elvira, e outro no vô Geraldo. O vô Augusto está forte por aqui, no auge de seus 92 anos.

Beijão,
E até a próxima.

6 comentários:

ana disse...

Não foi feito nenhum comentário até agora.

Lita disse...

anne!

Tah linkada no blog novo!

Pedro Ferro disse...

Depois de te ler pareceu-me que seria pouco apenas fechar a página e voltar à minha vida.

Li-te num folgo e parece-me que ainda estou algo ofegante e com poucas palavras em mente que te possam, ou me possam, fazer algum sentido.

Escreves bem e lanças as palavras em direcção ao peito... digo-te com total sinceridade que eu fui tocado.

Por agora, com lucidez, ainda só me vem um "obrigado"... pela partilha e pela coragem na exposição de tamanha sensibilidade.



Há uns dias atrás, enquanto falava com a minha mulher, disse-lhe, por entre alguns disparates, uma frase muito parecida com a tua ("(vaca contemplativa em terreno baldio)")... Ela já conhecia o teu blog e rindo-se da coincidência deu-mo o link para eu o vir conhecer. De facto foi estranho ir buscar uma frase tão perto da tua.

Hoje ao escrever no meu blog lembrei-me de forçar um pouco o título e vim buscar referências ao teu... hei de por lá um link para o teu espaço!

*
Pedro
(de Portugal)

Dittu Zen disse...

faltando a última novidade na carta agora né amor...
achei bastante surreal, uma carta pra alguém morto, pensando que em vida eu mesmo nunca mandei cartas ao meu pai, ou qualquer pessoa.
não esquece que eu escarrei por aqui, ou que escarrei em suas mãos bêbado ou nada disso, já te disse não uma nem duas, mas vai mas uma, sinto falta das revoltas, das loucuras, e fico feliz por você estar se encaminhando, ou nem tanto assim né?
;XX

Anônimo disse...

If im in the situation of the owner of this blog. I dont know how to post this kind of topic. he has a nice idea.

Unknown disse...

Só hoje encontrei teu post. Maravilhosa a carta. Eu mesmo tenho uma escrita e pronta pra entregá-lo, mas o tempo não permitiu que ele pudesse lê-la. Também eu, depois, me arrependeria de lha enviar-lhe.

Quanto aos quadros que ele pintava, sempre o elogiei e só aprendi a tocar violão porque ele me disse que eu era velho para aprender. Depois que aprendi trocávamos várias idéias, eu nas teorias musicais e ele nas práticas boêmias. Digitei e imprimi muitas músicas de sua pasta de músicas da igreja. Nunca deixei de me orgulhar dele e ele de mim, pois fazia questão de me elogiar na frente dos amigos.

Lógico, tivemos nossas desavenças, mas nada que tirasse o amor e o respeito que eu ainda sinto.

Adorei tua carta. Como você, também segredo algumas coisas quando estou só. Te Amo!

Muú